O pedaço arrancado de mim será útil, enfim
O pedaço arrancado de mim será útil, enfim


Em junho de 2019, quando estava me preparando para extrair o invasor que se instalou no meio da minha faccia, eu trombei com um documento interessante. No meio daquela vasta papelada que a gente assina para uma cirurgia, tinha um pedido para usar o material colhido nela em pesquisas do A.C.Camargo. Ou seja: estavam propondo que o tumor que saísse de mim virasse objeto de estudo no hospital.
Eu sou um cara de ciência, professor universitário por 26 anos, e gosto de pesquisas por definição. Sei da importância que elas têm, do papel social que cumprem. Fiz, ajudei a fazer e avaliei pesquisas. Mas era a primeira vez na minha vida em que eu atuava como material de pesquisa e no sentido mais físico possível. Eu não seria participante de um estudo social ou psicológico, mas um pedaço de mim serviria à pesquisa médica.
Assinei sorrindo a autorização, feliz por essa pequena alegria no infortúnio do câncer. Achei ótimo que o meu indesejado carcinoma espinocelular grau 2 histológico fosse parar num laboratório, em vez da lixeira hospitalar que o danado merecia. O mal que ele fez a mim poderia ser o bem para outros. Alguma serventia haveria para aqueles "dois fragmentos irregulares, medindo em conjunto 1,7 x 0.4 x 0,2 cm, constituídos por tecido pardacento e elástico", que a biópsia descreveu.
Fiquei sabendo mais dessa serventia recentemente, quando conversei com o Dr. José Humberto Tavares Guerreiro Fregnani, superintendente de Ensino e Pesquisa do A.C.Camargo, sobre o setor que ele comanda. Já contei da parte do Ensino, que oferece especialização oncológica aos médicos residentes, e também escrevi sobre a parte de Pesquisa Clínica, contando a história do nosso oncolega José Roberto Pianca. Agora vou falar da pesquisa de uma forma geral, que tem enorme importância não só para os pacientes do hospital, mas para a sociedade.
O paciente de um Cancer Center como é o A.C.Camargo não se liga muito no fato de que, mais do que um grande hospital, ele é quase uma universidade. Só não tem cursos de graduação. Além da especialização em oncologia para médicos formados, ele desenvolve programas de Pós-Graduação stricto sensu no campo da medicina, nos níveis de Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado. São programas reconhecidos pela CAPES, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, do Ministério da Educação, e avaliados com nota 6, de um máximo de 7. Isso é nível de excelência.
Os tipos de pesquisa desenvolvidos são três. A Básica, que faz trabalho em laboratório para descobrir os mecanismos e vias por onde os tumores aparecem, progridem e se disseminam. A Translacional, que faz a transição do trabalho em laboratório para a prática, usando o conhecimento molecular para resolver problemas reais da clínica médica. E a Clínica, envolvendo estudos com pacientes, em geral de novos medicamentos, que vão levar a novas práticas clínicas.

Desse total, 101 artigos foram liderados pelo A.C.Camargo, 123 foram produzidos em colaboração e 105 tiveram participação de autores estrangeiros, o que mostra o alcance do trabalho. Também foram iniciados 199 projetos de pesquisa.
É produção de uma universidade grande, como se vê. Atualmente, os programas trabalham em seis linhas de pesquisa: Biologia Celular; Molecular e Genética; Epidemiologia e Prevenção de Câncer; Diagnóstico em Oncologia; Terapias Oncológicas; e Suporte e Reabilitação.
Em fevereiro deste ano havia 205 alunos em Pós-Graduação: 41 na Iniciação científica, 63 no Mestrado acadêmico, 49 no Mestrado profissional, 69 no Doutorado e 10 no Pós-doutorado. Cerca de 70 desses pesquisadores são do corpo clínico do hospital. E são em torno de 70 os orientadores para todos os pós-graduandos.
O coração da área é o CIPE - Centro Internacional de Pesquisa, instalado no prédio da Rua Taguá. O A.C.Camargo oferece diversos serviços aos estudiosos do câncer, entre os quais o Biobanco, que fica no Bloco D da Antônio Prudente, o Hilda Jacob. Ali está depositada uma coleção de 200 mil amostras de tumores extraídos dos pacientes, destinada à pesquisa laboratorial. É ali que mora uma parte de mim agora e talvez de você, colega onco.
"O material fica congelado num freezer especial a –80º, que garante a sua integridade ad eternum", garante o Dr. Fragnani. E eu fico pensando na ironia da coisa…
Um desgramado que pôs em risco a nossa vida e nos deu um calor danado viverá eternamente no fresquinho, ou enquanto o estoque dele durar. Ele veio para nos lascar, infernizar, mas agora viverá apenas para ajudar a tratar e a salvar outros oncológicos.
Bem-feito para ele. Bom para todos nós.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje, atua como consultor de comunicação.
Um Cancer Center não é um hospital, é uma plataforma completa de atendimento, incluindo prevenção, investigação, estadiamento, tratamento, cuidados paliativos e reabilitação. Tudo no mesmo local.