A voz do paciente
Especialização faz bem à medicina, mas tem uma que falta

Especialização faz bem à medicina, mas tem uma que falta

Na minha temporada de internação, em 2019, as manhãs eram bem animadas. Mal eu tomava o café e o banho diário, começavam as visitas de inspeção. Vinha a enfermeira-chefe de turno, conferir se tudo estava OK no meu atendimento. Vinham os médicos que me operaram e suas assistentes, para checar como eu me recuperava. Vinham as moças da fisioterapia, me exercitar e fazer andar. Vinham as fonoaudiólogas, me treinar para comer e falar de novo. Vinham a nutricionista e depois o nutrólogo, porque uma coisa é uma coisa, a outra é outra, ainda que o fim seja o mesmo, alimentar. Vez por outra vinha também um psiquiatra, porque a coisa toda, a cirurgia enorme e a recuperação delicada, me piravam um pouquinho.
Era tanta gente para me examinar, todos os dias, que saía um médico ou terapeuta e logo entrava outro. Entrava no meu quarto e no dos coleguinhas de andar, porque os corredores ficavam cheios de aventais brancos, circulando de lá para cá. É claro que eu me senti muito bem atendido e acompanhado, acho que os outros também. Aquela movimentação intensa podia ser incômoda, mas dava muita segurança. Estavam cuidando da gente, era o exército da nossa salvação. Só que tudo aquilo também era, aos olhos de um observador veterano, uma demonstração impressionante do grau de especialização que a medicina atingiu. O que é bom, mas também é ruim.
Sou de uma geração que conheceu o "médico da família". Aquele doutor a quem os pais e as mães recorriam, e ao qual nos levavam, qualquer que fosse a queixa de cada um. Aquele abnegado que nos atendia em casa, tarde da noite, quando a febre estava muito alta ou os sintomas não recomendavam deslocamento. Em geral, era um clínico geral, que conhecia o nosso histórico médico e fazia o diagnóstico no estetoscópio e no tato, esquadrinhando o nosso corpo, conferindo os olhos, a língua e a garganta, batendo um martelinho no joelho, mandando tossir e dizer 33. Pedia exame de sangue e raio X, no máximo, até porque tomografia e ressonância ainda eram ficção científica. Quase sempre, ele mesmo conduzia o tratamento. Só nos enviava a um especialista se a medicação não respondesse.
Hoje, num grande centro urbano, isso é apenas uma recordação nostálgica. Não existe mais esse tipo de profissional "exclusivo", o "nosso médico", o "cura tudo". As pessoas já estão acostumadas a procurar o doutor conforme os sintomas sugerem — e o seu plano de saúde cobre. No posto de saúde ou na emergência do hospital, elas já pedem o especialista que imaginam adequado ao seu caso. O próprio Programa Saúde da Família, que atende a domicílio, tem equipes multiprofissionais. E a especialização médica vai a níveis muito avançados, com 55 especialidades e 61 áreas de atuação, se é que já não surgiu uma nova nos últimos dias. Até o diagnóstico virou uma delas.
O bom da superespecialização é óbvio: os médicos conhecem cada vez mais, bem a fundo, as suas especialidades. Têm recursos de diagnóstico e terapia que seus antecessores sequer sonharam e podem tratar as doenças com um grau de precisão muito alto. No caso do câncer, isso é crucial, assim como é também a abordagem integrada dele, as várias especialidades interagindo para enfrentar os tumores e suas consequências. O que, felizmente, temos de sobra no A.C.Camargo, nosso cancer center.
O ruim é a queixa que os oncológicos apresentam com muita frequência. A queixa que está nas conversas das salas de espera, nos debates do Conselho Consultivo de Pacientes, no coração de muita gente: a de que os médicos focam mais na doença do que no doente. Engalfinham-se com o tumor, mas se envolvem pouco com a vítima dele. Têm um fabuloso olhar técnico, enxergam o núcleo de cada célula, mas demonstram pouca empatia e, muitas vezes, têm dificuldade de comunicação. Não falam, ou falam pouco, ou falam difícil. E raramente falam por gestos, que podem valer por uma terapia inteira para o doente fragilizado: um tapinha no ombro, um aperto de mão, um abraço.
Essa falta de irrigação emocional no tecido médico, essa anestesia da compaixão e da humanidade, estão bem diagnosticadas e as formas de tratamento são intensamente investigadas. O esforço ocorre no sistema de saúde em geral, mas particularmente no A.C.Camargo, onde o tema da humanização da medicina, do acolhimento do paciente, está presente nas reuniões gerenciais, seminários internos e documentos de orientação. Foi levantado em todas as reuniões do Conselho Consultivo ocorridas até agora. Está na hora, portanto, de especializar-se também nele.
O médico de família não vai voltar — nem precisa. Basta que voltem a afetividade, o calor humano, a empatia. O profissional não pode nem precisa ser aquele antigo "médico de cabeceira". Só precisa ter sempre o coração na cabeça.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Radioterapia não deixa ninguém zumbi radioativo

Radioterapia não deixa ninguém zumbi radioativo

"Quando deitei naquela máquina, eu achei que ia ser cremado".
Em 19 anos de trabalho no A.C.Camargo, 11 deles como supervisora de operações de radioterapia, a enfermeira Kátia Cristina Trigo ouviu muitas coisas dos pacientes do hospital. Mas nenhuma frase foi mais chocante, nem expressou melhor a confusão e o mito que envolvem a sua área, do que essa, proferida por um coleguinha oncológico aterrorizado, ao iniciar o tratamento para se livrar do câncer.
Em vez da esperança de cura, renascimento, ele sentiu medo de voltar ao pó. E saiu surpreso da sessão, aliviado, quando experimentou na pele que não era nada disso. Quando entendeu que não estava num filme de ficção científica, sendo atingido por raios letais disparados de discos voadores. Não estava em Hiroshima, virando fumaça com a bomba atômica de 1945. Nem estava em Goiânia, em 1987, envolvido no acidente que contaminou centenas de pessoas com o elemento radioativo Césio 137, por desinformação e descuido de uma delas. Ele estava num dos principais cancer centers da América Latina, passando por um tratamento cuidadoso de radiologia, sob estrito controle e segurança.
Katia sabe que a maioria dos oncológicos chega à radioterapia com imagens assustadoras na cabeça, formadas pelo cinema e o noticiário. Sabe também que, quase sempre, eles chegam depois de cirurgia e quimioterapia, debilitados física e psicologicamente. Por isso mesmo, ela entende que o paciente de radioterapia exige um tratamento especial. Mais cuidadoso, atencioso, personalizado. "O cuidado está num toque, num olhar, em segurar a mão dele, saber o seu nome, ouvir as suas queixas, tranquilizá-lo", ela diz. "Se eu não souber o que a paciente precisa, eu não sirvo para trabalhar nisso".
Essa mentalidade está fortemente arraigada na equipe de 64 profissionais que Katia lidera, entre enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, técnicos de radioterapia e dosimetristas. Eu comprovei esse compromisso com o carinho, o mais profundo acolhimento, quando passei por lá em 2019, enfrentando uma maratona de 45 sessões. Fiz radioterapia na face, uma das mais delicadas, que exige manter o sujeito fixado à mesa dentro de uma máscara rígida de silicone, para que ele não se movimente nem um milímetro durante a irradiação. Foi uma experiência torturante para um claustrofóbico como eu, da moldagem da máscara até o último raio que me partiu. Mas consegui atravessá-la, relaxando progressivamente, mais calmo a cada dia, com o desvelo e o carinho impressionantes das pessoas que me atenderam.
Quem já passou pela radioterapia lembra, quem não passou vai conhecer a Radio Tour, uma visita às instalações do setor, que é a atividade inicial de quem chega lá. Alguém muito simpático vai mostrar a enfermagem trabalhando, os vestiários onde colocamos uma roupinha meio de papel, e as salas onde estão as máquinas, não muito diferentes daquelas mais conhecidas de tomografia ou ressonância magnética. Ali vão explicar como a irradiação atinge exclusivamente a área do corpo delimitada pelos médicos e que a dose é calculada para matar o tumor, não o portador dele. E mais tarde, em algum momento, alguém vai dizer, com franqueza, que a radioterapia deixa algumas sequelas, sim, porque são inevitáveis, mas que tudo é feito para minimizá-las.
Mas o que deve acontecer para que a experiência do paciente seja a melhor possível, a mais efetiva contra o tumor e a mais confortável, no transcurso da radioterapia?

Funciona sim. Funcionou comigo, maravilhosamente, e pode funcionar com qualquer um. "Ao contrário da quimioterapia, onde a pessoa põe um acesso no braço e vê o remédio gotejar dentro dela, a radioterapia é invisível", compara Katia, tentando entender a inquietação com ela. "A pessoa se deita na máquina e não vê, não sente nada". Bom, eu vi faces sorridentes e olhares confiantes ao meu redor. E me senti tão acolhido quanto eu precisava. Há de ser assim com todo mundo que saiba viver esse momento.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Acolhimento se faz com o coração e a boca

Acolhimento se faz com o coração e a boca

Ela teve um problema sério no fígado. Começou a passar bem mal, a penar de dor e de enjoo. As semanas passavam e os médicos demoravam para diagnosticar precisamente o que ela tinha, saber se era câncer ou não, ou que raio de moléstia seria. Ocorreu então, numa consulta, que o doutor analisava os exames, via as imagens e matutava, quando pediu a ela que lhe desse um minutinho. Disse que ia na sala ao lado ligar para um colega e discutir o seu caso. Ele saiu, mas deixou a porta aberta. Então ela ouviu e estarreceu.
— Fulano? Como vai você? Olha, eu estou aqui com um fígado que…
Um fígado! Ela, toda sensível por conta da saúde, exausta dos padecimentos que a doença impunha há vários dias, fragilizada física e emocionalmente, de repente se viu reduzida a um pedaço de carne. Não teve como controlar o sentimento ruim. "Esse médico não me vê como gente", pensou. "Sou apenas um fígado nessa consulta".
Corte para outro consultório, outra consulta. Agora não era ela, era ele. Um paciente remissivo de câncer, que aguardava o resultado de uma biópsia.
Tudo ia muito bem com ele, estava sem sinal de tumor no organismo há quase cinco anos. Mas, de repente, surgiu um nódulo safado, em local bem perigoso. Toca a investigar. Por vários dias, ele perdeu o sono e mal conseguiu comer, de tão tenso que ficou, à espera do resultado. Sua vida virou de ponta-cabeça. Aí veio o doutor e disse, na lata:
— A biópsia é positiva.
Ele desabou. A cabeça baixou na hora, junto com o astral. Câncer de novo! Todo aquele inferno de volta! Ele começou a praguejar baixinho, desconsolado, quando o doutor percebeu a situação e corrigiu.
— Calma! A biópsia é positiva, mas negativou para câncer. O que você tem é um fungo.
Ele fez uma cara de tanto pasmo, tanta perplexidade, que exigiu um complemento explicativo do médico.
— Olha, uma biópsia é negativa quando ela não consegue identificar nada, quando é inconclusiva. E é positiva quando consegue. No seu caso, ela conseguiu identificar exatamente o que você tem. E não é câncer, felizmente! É uma doença mais simples.
Ele não se conteve.
— Puxa, doutor! Mas não dava para o senhor começar pela segunda parte? Eu escapei do câncer, graças a Deus, mas quase morri do coração agora!
Essas duas cenas ilustram um problema comum no relacionamento entre os médicos e os doentes: a comunicação. Ambos lidam com a saúde, de uma forma muito direta, mas com perspectivas totalmente distintas. A depender de como se comunicam, isso pode ajudar ou complicar o tratamento.
O médico foca tão intensamente na doença, olha tão tecnicamente para ela, que nem sempre enxerga direito que tem um doente atrás dela. Um ser humano, com dúvidas e angústias enormes, que não é obrigado a entender as variantes do dialeto mediquês. O doutor mal tem tempo de enxergar além do que mostram os sintomas e os exames, na verdade, porque logo depois daquele humano à sua frente, já lhe aparece outro, e outro, e outro, e mais outro. Quantas consultas e procedimentos diários tem o médico de um grande hospital, como o A.C.Camargo? Dá para imaginar? Então, não dá para pretender que ele dê a cada doente aquela atenção premium, golden, megaplus que seria ideal. Mas alguma, é indispensável.
O paciente, por sua vez, não vê a doença, ele sente seus efeitos. Sente na carne, na mente, no ânimo. Preocupa-se em saber como levar a vida com ela, viver melhor, não perder capacidades, ter conforto. E, nessa busca, anseia tanto por bons resultados clínicos no seu tratamento como por atenção e carinho nas consultas, exames, internações, curativos, o que tenha de fazer no hospital. O paciente é um carente pela própria condição, um estima-deprimido, um afetodeficiente — para inventar no jargão médico. Daí a importância crucial de uma boa comunicação de quem o atende com ele, e vice-versa.
A palavra mais ouvida nas 18 reuniões realizadas desde 2020 no Conselho Consultivo de Pacientes, não por acaso, foi acolhimento. Em todas as sessões falou-se disso. Da necessidade de todo o pessoal médico abraçar os pacientes, deixar-se sensibilizar pelas angústias deles. Assim como, no sentido inverso, dos pacientes entenderem as circunstâncias em que o pessoal médico trabalha e não esperarem dele mais do que ele pode dar.
Acolhimento se faz com coração aberto e conversa franca. Com sensibilidade e comunicação. A interação médico-paciente, para ser efetiva, tem de ser também afetiva. Quando ela acontece, quando ela se fortalece, um continua sendo o doente e o outro, o que entende de doença. Mas os dois melhoram. Juntos.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Na imunidade baixa, não dê milho ao azar

Na imunidade baixa, não dê milho ao azar

Um belo dia, ou nem tanto, ele acordou e, ao escovar os dentes, sentiu que algo lhe escorria pelo nariz. Sinusítico crônico desde puberdade, achou que era um pouco de secreção líquida vindo abaixo. Secou e não deu nenhuma importância a ela. Mas logo depois, ao tomar o café da manhã, quem escorreu pelo nariz foi o próprio. Pingou pretinho na toalha e deixou claro que os líquidos da boca estavam vazando pelas narinas.
Ele tem metade do céu da boca e da face reconstituídos por enxertos, desde que o câncer exigiu a extração da sua maxila direita. O revestimento de tecido que agora completa a sua cavidade bucal — dito "retalho", em mediquês — havia furado. Exatamente onde? No mesmo lugar onde residia e de onde foi despejado o inquilino mais indesejado de todos. Seria, então, o velho carcinoma de volta? A temida recidiva? Foi ele que abriu o buraco?
Em busca de resposta, ele correu ao hospital e recomeçou a maratona que todos aqui conhecem, ou vão conhecer: consultas, exames, espera, tensão, angústia, medo e enfim… o diagnóstico. Não tinha nenhum câncer na fístula da boca. Mas, "lamentamos informar, tem um nódulo no pulmão". Novas consultas, exames, espera, tensão, angústia, medo e finalmente… não tinha câncer no nódulo. Tinha criptococose, a "doença do pombo". Um fungo que se desenvolve nas fezes daquela ave, vira pó quando elas secam e fica em suspensão no ar, podendo ser aspirado até algum pulmão desafortunado.
Mas, por que logo aquele pulmão, logo o dele? Porque, como todo mundo que passou por radio e quimioterapia, ele é imunodeprimido. Tem baixa imunidade, o organismo enfraquecido. Tende a pegar mais fácil, ou mais forte, as doenças que os imunocompetentes não pegam. Ainda mais porque, além de debilitado por quimio e rádio, ele também foi atacado pela covid. O pobre pulmãozinho do cara era e é, sozinho, um grupo de risco.
Bom, esse cara sou eu. Ainda estou aprendendo a lidar com o "pombardeio" que me atingiu os alvéolos, mas uma coisa eu já sabia e agora estou mais certo do que nunca: o imunodeprimido não pode dar moleza ao azar. Tem de se proteger o máximo possível, para não expor as suas limitadas defesas orgânicas aos atacantes biológicos, sempre ansiosos por derrubá-las. Sobretudo quando vive em ambiente urbano com ar poluído, como é o desta trepidante e ofegante megalópole.
Proteger-se significa comer direito, fazer exercício, não fumar, não beber, todo aquele combo que os médicos não cansam de recomendar. Significa também observar as regras que aprendemos com a covid — evitar aglomerações, usar máscara, lavar constantemente as mãos —, porque elas valem duplamente para os imunodeprimidos. Mais até. Portanto, se já fazemos quando estamos no hospital, por que não usar máscara também no transporte coletivo? Em qualquer ambiente, fechado ou aberto, que tenha muita gente? Na feira e no supermercado? Por que não usar o álcool em gel, nos locais onde ele é disponível? Por que não lavar as mãos, toda vez que voltar da rua?
OK, a pandemia foi um inferno e tudo o que queremos é voltar à normalidade. Se as medidas protetivas da pandemia foram relaxadas, vamos relaxar também e retomar a nossa vida como era antes — é o que muitos pensam.
A normalidade dos imunodeprimidos é outra. É a da atenção permanente, do autocuidado, da autoproteção. Isso não impede que um fungo escape e pegue a gente, claro, mas convém não facilitar. Cada qual vive a vida que a saúde lhe permite. Vive melhor quando não dá milho ao pombo da imprevidência.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Clube da luta

Clube da luta

Não. Apesar do título, esse texto não tem nada a ver com o filme de 1999, com Brad Pitt e Edward Norton. Nem com o romance de Chuck Palahniuk, de 1996, no qual se baseou. Não fala de dois caras perdidos no mundo, perplexos e insensíveis, que começam a trocar socos para ver se sentem alguma coisa na vida, dor física que seja.
Esse texto não se interessa por um dos caras, o protagonista, estar insone há seis meses e frequentar grupos de ajuda a pacientes terminais, para ver se rompe a indiferença e nutre alguma compaixão. Também não quer saber como os dois perdidos acabam reunindo uma legião de desajustados iguais a eles num clube, onde todos aliviam as tensões da frustração arrebentando a cara alheia.
A primeira regra do Clube da Luta é "você não fala sobre o Clube da Luta". E a segunda também. Mas aqui se trata exatamente do contrário. De falar dele. Porque há um outro Clube da Luta, diametralmente oposto àquele do filme e livro. Uma confraria de sensibilidade, solidariedade, esperança e obstinação, que reúne pessoas de um outro mundo. São os pacientes, familiares, médicos, enfermeiros e auxiliares que lutam incansavelmente contra uma doença insidiosa e maligna. É o clube da vida, onde a única cara arrebentar é a do câncer.
Devo confessar que, antes dele aparecer no meu ringue, eu torcia o nariz e dava pouco ouvido para a expressão "lutar contra o câncer". Achava ingênua, sem sentido, porque o que ocorre nessa doença é um desarranjo orgânico, que faz algumas células do corpo se reproduzirem de forma anômala, formando o tumor. Se é assim, como "lutar" contra células rebeldes? O que a força de vontade conseguiria de "plus a mais", quando o que se pode fazer, objetivamente, é tratar o câncer com os recursos disponíveis na medicina e torcer para que eles funcionem?
Então eu tomei o soco na fuça do diagnóstico, um jab no fígado de realidade e adentrei o tablado, tonto das pancadas. Era eu ali e o câncer diante de mim, um Mike Tyson prontinho a arrancar fora a minha orelha. Eu podia me agarrar nas cordas, que ele bateria do mesmo jeito. Podia me esquivar dos golpes, mentir para mim que ele não me derrubaria, mas não levaria muito para eu estar no chão, ouvindo a contagem dos meus últimos dez segundos. Ou então, entendi na hora, eu podia partir para cima dele, com toda força da minha mente e músculos, com rigor e disciplina, com paciência e firmeza, para levá-lo até o fim do combate e ganhar por pontos. Combalido, mas em pé.
Foi o que fiz, é o que a maioria de nós faz. Temos treinadores de branco conosco, passando a toalha no rosto, dizendo como e onde bater no danado, e como evitar que ele nos pegue. Temos um juiz, também de branco, que suspende o combate e dá tempo para a gente se recuperar, na internação, quando apanhamos demais.
Temos uma torcida maravilhosa na plateia - a família, os amigos, os conhecidos - gritando nosso nome o tempo todo, dizendo sem parar "Vai! Pega ele! Não fraqueja! Derruba!".
Sim, quem vence o câncer é a medicina, as técnicas cirúrgicas, os tratamentos, os remédios. Mas quem cria a couraça no corpo e põe aço nos punhos, para que ela vença, é a nossa vontade. Nosso propósito de sarar, nosso amor pela vida. Quem derrota o câncer é a ciência. Mas quem luta mesmo somos nós.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
O incerto Dr. Google
O incerto Dr. Google
Você é um terráqueo do século XXI, portanto é um ser conectado, idoso que seja. Tem uma vida igual à que seus avós tiveram, "presencial", interagindo em carne e osso com as pessoas e as coisas. Mas, também tem uma outra que eles não conheceram, a digital, virtual, online, com interações totalmente "remotas", em geral pelo celular. Então é muito improvável, quase impossível, que você tenha um câncer e não marque consulta no médico mais famoso do mundo: o Dr.Google.
O doutor é clínico geral, sabe de todas as doenças, mas é especialista em atender as mais complexas, como a nossa. Não por vontade dele, ou vocação especial, mas porque quanto mais grave é o mal, ou achamos que ele seja, mais rápido e mais vezes recorremos ao grande médico. Podemos ir eventualmente a um colega dele, como os doutores Yahoo, Bing, Ask ou o jovem Dr.ChatGPT, mas é mais raro. Bem raro. Dr.Google está muito acima de todos eles, com 98.88% de todas as consultas no Brasil.
O famosíssimo terapeuta é um concorrente inescapável do nosso médico, o que atende primariamente às nossas queixas. A gente vai até ele, faz a consulta e se, por acaso, o diagnóstico inicial for de alguma coisa mais grave — por exemplo um abscesso ou um nódulo com jeitão de tumor —, basta sair do consultório para correr ao Dr.Google. Para perguntar a ele tudo aquilo que o nosso médico já antecipou, mas foi pouco, ou não esmiuçou, ou esquecemos de perguntar, ou ele só vai falar depois de exames mais completos.
Os médicos "presenciais" não gostam nada do Dr.Google. Não por ciúme, por ele ser o mais famoso do mundo, mas porque ele é também o mais acessível, o mais falastrão, o menos cuidadoso e, por isso tudo, o mais inconsequente. Ele diz milhares, milhões de coisas, muitas delas sérias, muitas outras não, e todas misturadas. Tudo vem fragmentado, sem critério, o que acaba aumentando a nossa confusão sobre o diagnóstico, em vez de esclarecer. Por isso mesmo, os outros médicos dizem que o Dr.Google acaba sendo o maior charlatão do planeta.
É claro que não marcamos consulta no Dr.Google para ser tapeados, justo o contrário. Queremos saber mais, queremos conhecer tudo que pudermos da nossa doença, dos remédios e dos tratamentos, e o direito à informação é básico, está inscrito na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas, o exercício descuidado desse direito, pela incapacidade técnica de entender a informação passada pelo Dr.Google, pode nos levar ao oposto: à desinformação, ao mito, às crenças equivocadas. E, por essa via, à confusão, à frustração e à angústia.
O melhor uso a fazer das consultas ao Dr.Google é o de levantar uma boa lista de dúvidas, para discutir com o nosso médico. O de carne e osso. O que estudou seis anos e fez (ou está fazendo) mais dois de residência, para dizer coisas abalizadas sobre a nossa doença. Um bom diálogo entre paciente e médico, uma conversa franca e detalhada sobre as opções e perspectivas do tratamento, isso é tão importante para a cura quanto cirurgias complexas, exames sofisticados, terapias avançadas e remédios eficazes. Porque produz empatia, confiança, segurança e facilita todo o resto.
Dr.Google pode ser o bamba, o sabe-tudo. Mas, quem importa para a gente, na real, é o médico que nos atende, a equipe dele, os colegas que pode consultar. Ele é o sabichão a se confiar. E o esperto da nossa parte é saber criar o elo com ele, com perguntas bem calibradas, para compartilhar dessa sabedoria.
Sobre o autor
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Tsunami de solidariedade

Tsunami de solidariedade

Quem já está rodando o sistema operacional na versão 7.0, como eu, cansou de ouvir na vida uma frase lendária: O mineiro só é solidário no câncer. É lendária porque teria sido formulada pelo escritor mineiro Otto Lara Resende, coisa que ele sempre negou. E é lendária também porque é daquelas frases que se destacam do contexto em que surgiram e eternizam-se por si mesmas. No caso, o contexto foi a peça teatral "Bonitinha Mas Ordinária", do dramaturgo e cronista Nélson Rodrigues, encenada pela primeira vez em 1962, no Rio de Janeiro. Um personagem cita a frase, dizendo que é de Otto, e toda a história gira em torno dela — tão sugestiva e polêmica ela é.
Bem, esta não é uma coluna literária nem teatral, e também não é o caso de discutir aqui se a frase refere-se somente aos mineiros, ou se é somente no câncer alheio que a solidariedade humana aparece mesmo. Mas o que posso garantir, por experiência, a quem está iniciando a sua trajetória oncológica, é que essa doença cria uma impressionante corrente de solidariedade em torno da gente. Um campo magnético de muita força, com uma enorme carga positiva de amor, apoio e conforto. Ele funciona como uma couraça protetora, que nos ajuda a enfrentar o medo e os desafios do tratamento. E se há algo de muito bom no infortúnio que vivemos, é exatamente a sorte grande da solidariedade.
Eu fiquei impressionado com a onda solidária que inundou a minha praia, quando tive o câncer. Era muito ativo nas redes sociais, à época, e sumi por um bom tempo, consumido pelo impacto do diagnóstico, os preparativos da cirurgia, a internação de 17 dias, uma infecção na área operada e nova internação de mais uma semana. Quando voltei para casa, escrevi um depoimento emotivo no Facebook, compartilhei geral e acho que peguei na veia dos meus parentes e amigos. Aí veio a tsunami.
Recebi mais visitas num único mês do que nos dez anos anteriores da minha vida. Gente de todas as épocas, de todas as idades, de todos os perfis, que são importantes para mim e vice-versa, como demonstraram. Elas me trouxeram presentes com dedicatórias comoventes. Me deram testemunhos lindos da importância que eu nem sabia que tinha para elas.
Me abraçaram, me beijaram, me enlaçaram as mãos, fizeram cafuné, me deram tanto afeto quanto tomei de Dipirona no hospital. E foi igualzinho no mundo virtual. Choveu mensagens repletas de amor, de reconhecimento, de incentivo, nas redes, no email, no WhatsApp, no Messenger, no SMS. Mal tive tempo de pensar nos desconfortos da quimio e da radioterapia, que encarei logo depois da alta na internação. Fui engolido pela agenda da solidariedade.
Faz diferença para o convalescente essa torrente de afetividade? Eu acho que faz toda. A começar do cuidado carinhoso dos enfermeiros e atendentes, quase sempre impecável no A.C.Camargo, e do abraço forte que você recebe do círculo familiar mais íntimo: cônjuge, filhos, netos, noras e genros. Os meus deram um twist triplo carpado na rotina diária e fizeram revezamento para não me deixar nenhuma noite sozinho no hospital. Mimaram o cidadão aqui de todas as formas imagináveis.
Quando saí, o círculo íntimo virou muitos, progressivos, como aqueles da pedra atirada no lago. Senti como se eu virasse um ímã, pulsando magnetismo em todas as direções e atraindo energia afetiva. Que se somou à energia cerebral dos procedimentos médicos, à bioquímica da medicação, à radioativa dos tratamentos, e me deixou pronto para viagem, para recomeçar a vida, três meses depois de operar o câncer.
O mineiro é solidário no câncer, sim. O paulista também, o brasileiro, o mundo inteiro. Onde há algum senso de humanidade no planeta, a solidariedade aflora em torno dessa doença, certamente de muitas outras também, mas desta em particular. A solidariedade, por si só, não é capaz de controlar o câncer, todos sabem. Mas produz um estado de espírito que torna mais suportável e mais eficaz o tratamento. Ela faz o oncológico menos doente — e muito, muito mais feliz.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Leveza nos incômodos

Leveza nos incômodos

Acordo, tomo o remédio do jejum e pego o celular, para fazer hora nos 15 minutos recomendados pelo médico, até tomar o café da manhã. A primeira coisa que me surge é um tuíte de Preta Gil, onde ela aparece em roupa de baixo, com um acessório incomum na cintura. "Sim, eu uso bolsa de ileostomia", explica no texto, "e não tenho vergonha de mostrar, pois essa bolsinha salvou minha vida e me deu a possibilidade de me restabelecer de uma cirurgia que retirou o tumor que eu tinha!!!".
Os três pontos de exclamação não deixam dúvida: ela mostrou mesmo, sem traço de vergonha, até orgulhosa, algo que a maioria dos pacientes na mesma situação esconde. Mas o que ela não pode esconder de si mesma, ela ou qualquer paciente oncológico, são os incômodos, pequenos, médios ou grandes, que a doença nos impõe. Ter câncer é ganhar alguns desses "companheiros" de jornada e a luta contra ele inclui aprender a conviver com os indesejados, mesmo depois que a gente consegue tirar o tumor do corpo. Podemos falar deles ou calar, podemos amaldiçoá-los ou até valorizá-los — como faz corretamente a Preta. Mas ignorar não dá. Muito menos, gostar.
O mais universal dos incômodos, que também é perpétuo, é a apreensão. A angústia da dúvida, nas muitas formas em que ela se apresenta. O que provocou esse câncer? Foi algo que eu fiz? O tratamento vai funcionar? Será que eu me curei? Vou ter recidiva? Essas questões, quando entram na cabeça, não saem nunca mais. Ficam ali gritando aos neurônios, ou quietinhas num canto, mas estão sempre presentes. A não ser, imagino, que a pessoa vá aprender meditação transcendental nas montanhas do Himalaia e volte de lá levitando, tão desprendida conseguiu ficar das aflições do espírito.
E as aflições da matéria? Os incômodos físicos? Tem de todo tipo, de todo tamanho, em cada etapa da jornada. As picadas de agulha, em qualquer exame de controle. Ir ao banheiro na internação, com acesso no braço, empurrando a haste. Tomar banho com o acesso. A dor da punção, para extrair o líquido de uma área inflamada. A limpeza do intestino para a colonoscopia. O calor da injeção de contraste, na tomografia. A barulheira da ressonância, que parece que nunca vai acabar. O estômago querendo sair pela boca de tanto enjôo, na quimioterapia. O sufoco de ficar preso numa máscara de silicone, na radioterapia de cabeça. É um catálogo de torturas que merece atenção do Tribunal Internacional de Direitos Humanos.
Eu brinco com esses incômodos, quando estou lá penando, para ter a compaixão e o carinho dos profissionais que me atendem. Em muitos casos, a maioria, eu nem precisaria. Eles têm plena noção do que estamos passando e foram treinados a nos confortar, com o maior acolhimento possível, durante o doloroso transe. Mas fazem isso todo dia, com um monte de gente, e é natural que acabem tendo uma postura mais técnica, mais distante do que desejaríamos.
Então eu procuro logo quebrar o gelo, comentando trivialidades ou fazendo piada, para criar um elo de cumplicidade. Pequeno e efêmero que seja, ele vai ajudar muito naquele meu penar. Nunca encontrei resistência a esse método de aproximação. Ao contrário, o pessoal ri comigo e me conforta o melhor que pode. Tudo fica melhor quando a gente coopera para tornar leve o que é pesado.
Incômodos são incontornáveis no câncer e o melhor a fazer é encarar, com positividade. Porque eles fazem parte do tratamento. Então vamos deixar de choradeira, porque, do oncológico ou do sadio, "o que ela quer da gente é coragem".

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Haja ouvido para a impaciência

Haja ouvido para a impaciência

Eu só compreendi o sentido da palavra paciente, em sua plenitude, quando tive o câncer.
Até então, nas internações e procedimentos médicos que eu experimentei, o termo tinha uma conotação neutra. Era apenas o oposto de agente.
Eu, o corpo que tinha algum problema, era o paciente. Ele, o médico ou terapeuta que trabalhava nesse corpo para curá-lo, o agente. Coisa bem simples.
Mas isso mudou bastante com a doença. O alcance semântico da palavra no mínimo dobrou.
Agora sou paciente mesmo no outro sentido, o de sereno, calmo, conformado, que sabe esperar. Ou melhor: tento ser. Luto para ser.
Muitas vezes perco a luta. Porque ter paciência para enfrentar o câncer é um desafio equivalente a curar o câncer.
Maior até, porque a vida dos que trabalham para nos livrar do danado não está em risco — e a nossa pode estar.
Haja paciência para controlar os temores, a cada etapa da jornada. Haja paciência para segurar a pressa de ver o tratamento concluído, com um belo laudo negativado — esse verdadeiro êxtase.
A paciência do paciente no A.C.Camargo é testada já nos agendamentos.
Você vem com uma urgência absoluta, querendo resolver o seu assunto amanhã cedo no primeiro horário, e logo percebe que o tempo hospitalar é outro. O calendário não existe só para você.
O hospital realiza anualmente quase 2,5 milhões de procedimentos, entre consultas, exames, internações e cirurgias. Os pacientes novos são cerca de 15 mil a cada ano. A fila não para nunca.
Portanto, conforme-se. Aquela visita ao médico, que você queria para ontem, vai ficar para daqui a 15, 20 dias.
Estou falando, claro, do que não é urgente.
Se você tem uma dor aguda, uma febre forte ou outro sintoma grave que exija atenção imediata, está lá o Pronto-Socorro para atendê-lo. Faz isso muito bem.
Mas você é consciente e sabe quando o problema exige recorrer ao PS. Não vai empatar o serviço por lá com algo que não é de lá.
Então, como segurar a ansiedade até o atendimento, se não é caso de urgência? Se é alguma coisa estranha que você está sentindo ou observando, algo incomum, que não dói nem parece ameaçar de imediato, mas… preocupa?
Pode ser um agravamento do câncer que tenho? Uma recidiva do câncer que já tirei? Não é o que passa na cabeça? E fica nela, martelando, martelando?
Eu defendo que o A.C.Camargo tenha um canal de comunicação para o paciente apresentar essas dúvidas rapidamente. Uma pré-consulta, informal, antes da própria.
Para o agoniado descrever o seu problema de modo geral e receber uma primeira apreciação, que será confirmada ou não na consulta agendada, em alguns dias.
Genérica que seja, uma resposta de fonte médica categorizada pode ser um tranquilizante poderoso nesse momento. Um Tramal na alma.
Outra coisa que desejaria ver implantada é uma lista de espera, para antecipação das consultas.
Só tem horário para outubro? OK, então agenda lá, mas me põe na fila da antecipação. Se abrir uma vaga antes, o sistema me notifica automaticamente. Quem não gostaria?
Paciente oncológico precisa de paz. É um insumo essencial no tratamento e a ansiedade liquida com ela.
Não há paciência que dê conta dessa angústia.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Chegar chegando

Chegar chegando

Olá! Estou chegando para conversar um pouco, todas as semanas, sobre as questões do paciente neste vasto mundo do A.C.Camargo. Mereci o convite para assumir esta coluna talvez porque eu sou um tipo muito falante e por demais perguntante, que já deu tantos palpites para a melhoria do nosso hospital que foi parar no Conselho Consultivo de Pacientes. Talvez também porque sou um compulsivo escrevente, com mais de 50 anos no jornalismo e na comunicação, e os meus palpites fiquem melhor por escrito. Seja como for, esta é uma estreia e, assim sendo, vou começar pelo começo, contando um pouco de como foi a minha entrada na atmosfera do hospital e como percebi logo de cara que ele é isso mesmo que eu disse já na primeira frase: um vasto mundo - de ciência médica, de vivências, de aprendizado e de autoconhecimento.
Se há algo que o câncer faz por você, para o mal mas também para o bem, é mudar a sua vida. Virar tudo de ponta-cabeça, de dentro para fora, virar do avesso. Ele traz os médicos para estudar o seu corpo, tirar o invasor que se alojou nele e ensinar o que fazer para evitar que ele volte. Mas também cria a oportunidade de você repensar como funciona a alma desse corpo, o tipo de vida que você leva, o que está fazendo dela. Comigo foi assim e também é com todo mundo, de algum jeito. E tudo começa naquele momento fatídico, em que a gente nota que algo na carcaça está errado e não é de um jeito comum.
No meu caso, foram os dentes. De repente, do nada, eles ficaram amortecidos. Todo o lado direito da arcada superior anestesiou-se sozinho. Estranhíssimo. Meu dentista radiografou, examinou e não viu nada de dentário na minha queixa. Tudo parecia normal. Como padeço de uma sinusite crônica desde a adolescência, ele mandou que eu procurasse um otorrino e… Bem, para não me estender: passei por três médicos e quatro dentistas em um ano, fiz três cirurgias no nariz e na arcada dentária, e os dentes seguiram anestesiados. Até que finalmente meu rosto começou a inchar e localizou-se um carcinoma espinocelular grau 2 histológico sob a maxila, acima dos dentes.
"Agende uma consulta no A.C.Camargo", recomendou o otorrino. "Eles vão resolver isso". Assim fiz. E assim, de fato, eles fizeram.
Numa tarde de maio de 2019, entrei no prédio da Antônio Prudente e me encaminharam para o setor de Cabeça e Pescoço. Tomei um susto. O primeiro do dia. A sala de recepção do Ambulatório Jorge Fairbanks parecia a Rodoviária do Tietê às vésperas do Natal. Não cabia mais nenhuma célula aí, sadia que fosse. Ao primeiro olhar, entendi que a consulta ia atrasar e não deu outra. Mas, antes de mofar naquele salão de espera, matutando sobre as horas que ele me tomaria no futuro, veio o segundo susto. Foi quando eu fiz a minha identificação e ganhei o RGH, o registro no hospital.
"Seu número é 15984510", disse a mocinha, com um lindo sorriso. "Ele vai identificá-lo em tudo que fizer aqui dentro". A despeito daquela simpatia reluzente, eu logo pensei: um número? Já não bastam CPF e RG? Virei apenas mais um número aqui, no meio de tanta gente? Adeus a um atendimento mais personalizado, acolhedor… Deixei de ser eu. Esse é número do meu tumor.
Pois é, eu não tive como evitar esse pensamento ruim. O astral baixou mesmo e ele já não andava nas alturas. Mas era tolice minha. O RGH identifica cada um, o que facilita a organização do hospital e a vida do paciente. E garanto: a gente não é tratado como um número qualquer. Muito longe disso. Nem as salas de espera são mais a antessala do inferno. Ainda lotam, eventualmente, e a consulta pode atrasar, mas as rotinas do hospital melhoraram muito nos últimos anos. O meu RGH hoje é um número afetivo, que guardo na cabeça e uso para fazer combinações na Mega Sena. Uma hora dessas, a sorte vai me sorrir com aqueles algarismos.
Então, devidamente numerado, aconteceu a consulta. Ou melhor: as consultas. Porque a gente descobre que, no atendimento do A.C.Camargo, sempre tem um médico antes do médico, quando não mais. Médicos ou médicas, claro. De São Paulo e de todas as partes do Brasil, da América Latina, da África. Uma diversidade maravilhosa de faces, de peles, de vozes, de jeitos, unificada pelo avental branco e o propósito de curar o câncer alheio, aliás "lesão", como eles dizem. Cancer Center, sabe? É isso que significa. Prática médica, ensino, pesquisa. Um montão de gente moça e madura trabalhando junta o tempo todo, fazendo, estudando e aprendendo medicina. E você é a razão de ser daquilo tudo. O foco. O alvo.
Primeiro veio uma jovem médica me atender. Residente, complementando a formação, como os demais da sua idade. Eles formam equipes em torno do médico titular, mais experiente, que é ao mesmo tempo o professor deles e o gestor do nosso prontuário. No meu caso é o Dr. Hugo Fontan Kohler. E eu fui recebido antes dele pela Dra. Estefani Albuja Rivadereira, uma elétrica e simpática equatoriana, que depois foi uma presença constante nos meus 17 dias de internação. Na primeira consulta, ela preencheu páginas do sistema com as minhas informações, detalhando em minúcias o meu histórico de saúde.
Aí veio o Dr. Hugo, acompanhado dela e mais uns dois residentes, e me levou para uma sala mais equipada. Eu já estava com a biópsia feita, a pedido do cirurgião-dentista que identificou o tumor, e ele analisou as imagens e o laudo com os assistentes. Depois me examinou minuciosamente, com uma câmera enfiada no meu nariz e na boca aberta. Mais conversas e ponderações com os assistentes. Eu mal me aguentava de ansiedade, já atacado pela síndrome de jornalista em abstinência de informação. Só esperava o exame acabar, para iniciar a saraivada de perguntas. Dr. Hugo terminou, sentou num banquinho à minha frente, respirou fundo e me olhou. Lá vinha o veredito. O momento X. A hora da verdade. Eu estava tão nervoso que me adiantei. "Doutor, por favor, papo reto. Eu vivo de informação, a verdade me interessa. Vá ao ponto, me dê a real, eu aguento o tranco. Como está o meu tumor? Saio dele vivo?".
Ele sorriu e respondeu, em três frases curtas. "É grande. Mas tem cura. E nós vamos buscar".
Foi tudo que eu precisei ouvir, para acalmar o medo e focar na meta. Conversamos mais uma tantão sobre o tratamento. Descarreguei meu arsenal de dúvidas e ele me explicou que o tumor era agressivo no local, mas não era expansivo, do tipo que dá metástase. Disse que teria de operar, que a cirurgia deixaria sequelas, mas tudo teria conserto mais à frente. E esse foi o início de uma relação de confiança, com o médico e o hospital, que só se fortaleceu nesses quatro anos.
Resumo da chegada? O começo do câncer é assustador, a gente está muito frágil e qualquer detalhe inquieta. Uma sala de espera cheia, um número de prontuário, um assistente que chega antes do médico, o exame de diagnóstico, a conversa sobre ele, tudo pode ser angustiante, na situação nova que se vive. Mas um atendimento acolhedor, tanto na gentileza com que nos recebem quanto no profissionalismo que demonstram, logo torna as coisas mais normais e o bicho-papão deixa de assustar. Você tem uma coisa perigosa dentro do corpo, mas está seguro, está em boas mãos. Foi buscar ajuda numa das principais instituições oncológicas da América Latina e ela te acolheu, mostrou firmeza. Agora é com você, com a sua força de espírito, com a sua vontade de vencer. Confiando nisso, tudo vai dar certo.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.