A experiência de testar no corpo um remédio novo
A experiência de testar no corpo um remédio novo
Zé Roberto é um cara emotivo. Nos conhecemos há pouco tempo e, nas duas vezes em que estivemos juntos, uma ao vivo, outra online, ele se emocionou. Ele é dos meus, eu me identifico totalmente com isso. Não sei se tem base científica, mas acho que as emoções afloradas ajudam o oncológico a enfrentar a doença. A chorar as suas angústias, a vibrar mais nas vitórias, a seguir em frente com mais vitalidade.
Ainda mais no caso dele, que enfrenta um duplo preconceito. Além de ser paciente de câncer, doença que muita gente ignorante acha que condena a pessoa, Zé Roberto também participa de um estudo clínico, como usuário de um remédio experimental. Essa mesma gente pensa que ele é uma cobaia, um rato de laboratório, só que mais crescidinho.
José Roberto Pianca é meu colega no Conselho Consultivo de Pacientes e Acompanhantes, e já falei dele antes, sem revelar seu nome. Mas agora vou contar a sua história, explicar como funciona a área de Pesquisa Clínica do A.C.Camargo e dar um dedinho de contribuição para desfazer a ideia de que participar de um teste de medicamento é uma aventura perigosa.
Aos 59 anos, em 2022, Zé Roberto tinha uma condição física excelente. Jogava futebol, caminhava, fazia academia, esbanjava saúde. Mas em meados daquele ano, ele sentiu que havia alguma coisa errada em seu corpo. Foi passar um fim de semana na praia e mal conseguiu andar, de tanto cansaço. Não tinha dor, mas percebeu claramente que havia um problema.
Parecia coisa pouca. Era muita
O primeiro diagnóstico foi de anemia. Zé Roberto tomou medicação para repor o ferro no organismo, mas não funcionou. Estava perdendo peso. Foi então que, em julho de 2022, novos exames diagnosticaram um tumor no sigmóide, a ligação do intestino grosso com o reto.
Era coisa séria. Já havia metástase no fígado e no pulmão, e não era um colorretal comum. Era um KRAS G12C, um tipo de câncer mutante, daquele que transforma as suas características e dá baile na medicina. Atinge de 3 a 4% das pessoas com tumor nessa região.
Zé Roberto começou a se tratar em Jundiaí e Campinas. Implantou um cateter interno, fez 16 sessões de quimio, com Folfox, no segundo semestre daquele ano, mas elas não tiveram efeito. Os tumores seguiram crescendo. No início de 2023, a sua médica, Dra. Luana Garcia, do Grupo Sobam, orientou que ele fosse ao A.C.Camargo, para tentar um tratamento experimental.
Por que escrevi "tentar"? Porque participar de um tratamento desses, um estudo clínico de um novo medicamento, não depende da gente querer. Depende de poder — e não é questão de dinheiro. Depende do câncer que a pessoa tenha, das condições dela, do que o hospital esteja pesquisando, de várias coisas. Mas é essencial que o tratamento do paciente, pelos meios convencionais, não esteja funcionando.
Zé Roberto chegou ao A.C.Camargo em fevereiro de 2023 e gabaritou nos quesitos. Pelas características de seu caso, ele foi considerado elegível para estudo clínico e escolhido para compor o grupo de teste de um novo medicamento, do laboratório Mirati Therapeutics Inc. Tornou-se paciente do Dr. Celso Abdon Mello, líder do Centro de Referência em Sarcomas e Tumores Ósseos, e iniciou a terapia.
O que é Pesquisa Clínica?
Aqui, vamos fazer uma pausa de suspense. Vamos convocar o Giovanni Rosso, gerente da Unidade de Pesquisa Clínica do hospital, para explicar como funciona a coisa por lá.
Para começar, ele esclarece que estudos clínicos são aqueles que envolvem seres humanos no teste de novos medicamentos. Vêm depois dos testes em laboratório e dos testes com animais. Entre esses estudos está, por exemplo, o da terapia celular (Car-T), o assunto do momento na oncologia.
A Pesquisa Clínica do A.C.Camargo foi criada em 2000. Desde então, realizou cerca de 320 estudos clínicos, envolvendo 3.600 participantes. Esses estudos são globais, realizados simultaneamente em vários países, para testar a eficácia do tratamento em populações diversas. Conheça alguns destes estudos que estão em andamento.
"A pesquisa clínica em oncologia está em seu melhor momento no A.C.Camargo", diz Giovanni.
Os estudos são financiados por patrocinadores, em geral laboratórios farmacêuticos, como Mirati lá de cima. Atualmente são 47 esses patrocinadores, bancando 140 diferentes estudos. Eles envolvem pesquisadores e pacientes dos 12 Centros de Referência do A.C.Camargo, ou seja, de todas as especialidades oncológicas.
O trabalho é controlado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital, com foco em 4 pontos: segurança do paciente, bem estar dele, acolhimento e ética no relacionamento. "Nós trabalhamos com padrões muito fortes do que é um estudo clínico, padrões muito sérios e rigorosos", garante Giovanni.
Como em muitíssimas pesquisas, e não apenas médicas, o estudo clínico mobiliza dois grupos de pessoas: as que tomam o medicamento novo e as que seguem tomando o medicamento convencional. É o chamado "grupo de controle". Comparando a evolução dos pacientes nos dois grupos é que dá para saber se o novo tratamento funciona mais que o convencional. E quanto.
O número de participantes em cada grupo depende do tipo de pesquisa. Pode ter poucas ou várias pessoas. Mas não é o A.C.Camargo que escolhe quem participa, mas o que está em um protocolo de pesquisa e aprovado pelo Comitê de Ética. O hospital seleciona os elegíveis, atribui um número a cada um deles e envia esses números ao laboratório parceiro, para que ele faça o sorteio de quem vai compor o grupo de teste e o grupo de controle. Assim, os pacientes são selecionados quando preenchem todos os requisitos do protocolo de pesquisa. Zé Roberto foi um deles.
Esperança, baques, recomeço
"Quando comecei o tratamento, o meu remédio ainda não tinha nome, só tinha código, MRTX849. Mas ele me fez muito bem, me deu muita esperança", diz ele. "Já foi aprovado nos Estados Unidos, estão vendendo lá com o nome de Adagrasibe. O estudo do A.C.Camargo é para ver se ele pode ser validado também no Brasil".
Inicialmente tudo correu bem. Nada de anormal com o novo remédio, nenhum efeito ruim. Mas as coisas complicaram em julho de 2023. O tumor do intestino, que estava controlado, começou a crescer rapidamente. "Provavelmente porque o câncer é mutante", ele acredita. Foi necessário fazer uma cirurgia de emergência, para extrair o tumor.
Na sequência, Zé Roberto encarou mais sessões de quimioterapia. Fez também radioterapia intensiva no fígado, concentrada em apenas 4 dias, com irradiações de uma hora, pela manhã e à tarde. No balanço geral, ele acumulou cirurgia, 40 sessões de quimio e mais o "intensivão" de radio. Um portfolio oncológico de respeito.
Nessa trajetória, Zé Roberto perdeu bastante peso. Tinha em torno de 94 quilos, caiu para 75, agora está com 80. Ganhou uma parceira eficiente, mas não muito agradável: uma bolsa de colostomia. Ele se constrange de exibi-la e parou de ir à academia por causa disso. "Pegou um pouco na parte emocional. Você fica meio limitado, todo mundo fica olhando, é bem desagradável".
Agora há pouco, em fevereiro de 2024, Zé Roberto teve dois golpes. Morreu de repente, precocemente, o Dr. Celso Abdon, uma perda enorme para o A.C.Camargo, maior ainda para os pacientes dele. E o tumor no pulmão voltou a crescer, saltou de 18 para 40 mm. Isso comprometeu a sua participação no estudo clínico, porque, para estar nele, o tumor tem de se manter dentro de um limite de crescimento. E o dele foi além.
"Quando você recebe a notícia de que o medicamento não funcionou, dá um baque", ele conta. "A gente fica chateado, porque tinha esperança nele. Mas tem de ir em frente, não é? Como se diz, enquanto tem vida, tem esperança. Então é agradecer a Deus todo dia por mais aquele dia e seguir em frente."
Zé Roberto voltou ao tratamento convencional, agora acompanhado pelo Dr. Angelo Brito. Ele está bem agora. Vive e trabalha normalmente. Não tem dor, nunca teve em todo o processo. Sente cansaço quando faz quimio, como qualquer um de nós. Mas, olhando para ele, nem parece que está doente. Muito menos que seria um rato de laboratório tamanho grande. Ou que tenha se tornado mutante como o seu câncer, com o remédio que testou.
“A melhor forma de lutar pela vida é estar medicado e acompanhado", diz ele, que voltou aos cuidados da Dra. Luana em Jundiaí, mas segue monitorado de perto em sua jornada pela equipe de Pesquisa Médica.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje, atua como consultor de comunicação.
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