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O que é duro de engolir

 
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O que é duro de engolir

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Foto do Gabriel Priolli, colunista da Voz do Paciente

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Foto do Gabriel Priolli, colunista da Voz do Paciente

Tem coisas nessa vida que são difíceis de engolir. Algumas, muito difíceis. Todo mundo sabe disso e cada um tem as suas. Mas ninguém vive mais essas dificuldades, nem tem tantas delas e tão complexas, quanto a minha turma, os pacientes do câncer de cabeça e pescoço. Dos cânceres, aliás, porque eles são de muitos tipos. Diferem no formato, no tamanho, na localização, na malignidade. O denominador comum é que produzem muito estrago, muita sequela. Como freguês assíduo desse incômodo, eu posso garantir: ele é duro de engolir.

Os pacientes de cabeça e pescoço vivem as dificuldades do que lhe deu nas ventas, na boca ou na goela. Mas quem sabe tudo delas, tecnicamente, são os especialistas da Fonoaudiologia. Eles são sete no A.C.Camargo e atendem mais a turma de C&P, mas também podem cuidar de quem tumor no esôfago, no estômago ou no sistema nervoso central. Há mais de 20 anos no hospital e há 12 na área de Fono, a Dra. Camila Barbosa Barcelos integra essa equipe e é preceptora da residência multiprofissional; ajuda na formação de novos fonoaudiólogos. É com ela que vamos, para entender como canta o sabiá nesse campo e como ele engole o alpiste, quando consegue fazer essas coisas.

A coisa mais dura de engolir no câncer é o ato em si, a deglutição dos alimentos, a depender do que a extração do câncer produziu na boca ou na garganta. Pode ser duríssimo deglutir, mas é indispensável. "A fala é importante, pode ser até um instrumento de trabalho de muita gente, mas a deglutição é uma questão de sobrevivência", lembra a Dra. Camila. Esse procedimento tão natural pode ser um desafio enorme, se a pessoa fez uma laringectomia supraglótica, uma cirurgia que tira tudo o que está acima da prega vocal, na laringe, "O paciente continua com voz, mas perde todo o processo dos esfíncteres da laringe, que fecha a entrada do pulmão", explica a doutora. "Com toda certeza, 100% dos pacientes que fazem essa cirurgia vão ter aspiração de alimento no pós-cirúrgico. A comida vai entrar no lugar errado e é preciso lidar com esse desafio, até reabilitá-los".

Mais duro ainda de engolir, e não só o alimento, é quando a língua também foi prejudicada pelo câncer. A Dra. Camila dá um exemplo. "Eu tenho uma paciente de 28 anos que fez uma glossectomia total, tirou toda a língua. Reconstruiu com um retalho de braço, mas o retalho não tem movimento. Ocupa o espaço da cavidade oral, o que ajuda ela a falar, mas não tem movimento". Entre as perguntas que a moça fez após a cirurgia, uma foi especialmente angustiante para a fonoterapeuta. "Eu não vou mais beijar na boca?". Resposta complicada de dar, não? Para uma mulher nova, com toda uma vida social pela frente. O que dizer, para acalmar uma inquietação tão íntima?

É muito duro engolir o câncer na boca quando. não contente com a deglutição, ele compromete a fala. "Às vezes, as cirurgias pegam o lábio ou a mandíbula, e a pessoa acaba perdendo alguns fonemas", diz a Dra. Camila. "A alteração de fala é muito comum em cabeça e pescoço, e ela é bem variada. Para reabilitar o paciente, nós temos de ver o que foi tirado, anatomicamente, e o que restou de estrutura. Então entramos com exercícios, para adequar os fonemas aos novos pontos articulatórios da fala". Exercícios customizados, diga-se. Planejados para cada caso, porque as pessoas não saem iguais da cirurgia. Cada uma tem a sua própria sequela,  

É duro de engolir o câncer, está bem claro, quando ele envolve comer e falar, duas funções essenciais da vida. Envolve, não. Quando ele atrapalha tudo. A Dra. Camila explica melhor. 

Dra. Camila Barbosa Barcelos, fonoaudióloga
Na cirurgia de cabeça e pescoço, os pacientes alteram dois padrões fundamentais, tanto de sobrevivência quanto de socialização. Eles alteram a habilidade de se comunicar e a socialização de se alimentar, de comer em público
Dra. Camila Barbosa Barcelos, fonoaudióloga

Aconteceu exatamente isso comigo, ao perder quase toda a arcada dentária superior, na extração de um tumor na maxila. Ficou difícil as pessoas entenderem a minha fala ruim e comer fora virou um tormento. Mas eu acrescento outro elemento a esse problema.

É duríssimo engolir o câncer quando, além da deglutição complicada e das deficiências fonéticas, ele produz a desfiguração. Aquela linda pessoa que você era, ou nem tanto mas não comprometia, transforma-se assim num Sloth dos "Goonies", ou numa Bruxa Alcéia da Luluzinha. Difícil de ver no espelho e, mais ainda, no olhar de espanto e comiseração dos outros. Isso quando a vista não se desvia do incômodo, o que é muito frequente. "O câncer de cabeça e pescoço não tem como esconder, não é?", a Dra. Camila reconhece. "O de intestino você esconde, mesmo estando com uma bolsa de colostomia. O de mama você também consegue. Mas o de cabeça e pescoço está na cara. Meus pacientes dizem que é difícil se recolocar, as pessoas olham com julgamento. Você passa por um momento de se esconder, de não querer voltar à vida social".

No dia em que conversamos, ela atendeu um caso desses. "Eu estava numa agenda de ambulatório e tinha uma mulher de 40 anos, por aí, que retirou parte da mandíbula e todos os dentes de baixo. Ela tem de se reabilitar e voltar ao trabalho. Tem que falar bem porque é uma gestora, tem 10 funcionários, faz reunião online todos os dias. Meu desafio é lidar com esse perfil de pacientes, adultos jovens, que têm uma carreira profissional, filhos pequenos. No relato deles, o desafio social é muito maior, porque tem o aspecto estético, que não dá para ser escondido".

Câncer é duro de engolir, qualquer que seja. Pior ainda quando é o de C&P, como deu para entender. Ele desce redondo quando a pessoa encara a terapia de fono com rigor, sem se achar ridícula de mexer a boca e língua em movimentos curiosos, e sem abandonar os exercícios por vergonha disso, como fazem alguns panacas. Ele pode engasgar de emoção, quando a gente lembra da voz e da figura que não vão mais voltar, porque a cirurgia levou embora para nos deixar vivos. Mas o remédio é levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. O que o câncer quer da gente é coragem. Para os cuidados médicos, temos um pessoal médico empenhado, como a Dra. Camila. Para cuidar da alma, temos a força da vontade.

Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

Por que o A.C.Camargo Cancer Center?

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