Um símbolo da nossa coragem
Um símbolo da nossa coragem


Outro dia, numa consulta, o médico colocou um estetoscópio nos ouvidos e encostou o auscultador no meu peito. Para não dizer que tomei um susto, eu me surpreendi com o gesto. Há anos não via o tradicional aparelho em consultório nenhum, muito menos na mão de algum doutor. E como sou dado a matutar sobre as coisas, filosofar como bom estudante de Humanas que fui e sempre serei, me ocorreu de pensar sobre o sentido e a duração dos símbolos. Em particular, aqueles da medicina.
Sim, porque o estetoscópio, todos sabemos, cansamos de ver, é o símbolo gráfico do médico. Assim como a cruz vermelha é do hospital, a touca é da enfermeira e a cama de ferro é do paciente. Pode procurar aí na sua própria memória, ou recorrer à do Tio Google, que você vai achar todos esses símbolos em vários formatos, tamanhos e estilos. E, no entanto, com exceção da cruz, todos estão desatualizados.
Cruz tem perenidade, isso é indiscutível. A mais famosa delas, a cristã, surgiu há 2.000 anos e não apenas sobrevive no mundo atual como está no centro dos acontecimentos, junto com a lua crescente do islamismo, mais novinha que ela, só com 1.300 anos de idade. Já a cruz vermelha passou dos 160 e está aí, firme e forte, em placas de rua e de fachada de tudo que é cidade, exceto no mundo islâmico, onde reina o crescente vermelho.
Mas os outros símbolos da medicina caducaram, vamos reconhecer. O estetoscópio já era, coitado, ele que tantas tossidas escutou, tantas vezes ouviu gerações sucessivas dizerem 33. Mas não consigo imaginar o que poderia representar hoje o médico. O que poderia ser? Da mesma forma, a enfermeira. Aquelas charmosas toucas branquinhas com a cruz, que enfeitavam a cabeça das nossas atenciosas cuidadoras, desapareceram. Só vemos em filmes de guerra e olhe lá, apenas naqueles de guerras antigas. Também não imagino que símbolo poderia representar apropriadamente a enfermagem moderna.
E aí chego ao nosso caso, os pacientes. Cama de ferro como símbolo?!? Quando dispomos de leitos hospitalares de plástico rígido, com design de carro europeu, cheios de funcionalidades e mais confortáveis do que a maioria das camas de hotel, talvez até do que a nossa? Não faz sentido. Eu não me reconheço naquele desenho antigo. Para mim, o que mais simboliza um enfermo hospitalizado é outro equipamento. O mais chato de todos, o mais irritante, o que é impossível gostar.
Qual é ele? O suporte parenteral, claro. Aquele cabide que põem ao lado do leito, depois de colocarem um acesso no nosso braço, e prendem nele soro, bolsas de medicação e a gente mesmo. Aquele estrupício que acaba com a liberdade de movimentos e se enfia no banheiro junto conosco. Aquele chato que, a depender do seu tratamento, pode mandar um primo dele infernizá-lo em sua casa, na recuperação pós-internação: o suporte enteral. O traste dos infernos onde você pendura os frascos de alimento e água, e conecta com a agradabilíssima sonda enfiada em seu nariz. Torcendo para que não goteje nada pelo lado de fora, dele e da sonda, o que é raro acontecer.
Eu elejo o suporte para novo símbolo do paciente! Ele é a própria ideia da dependência da pessoa ao tratamento médico. Não existe fora desse contexto, não serve para pendurar bolsa e chapéu. Faço esse reconhecimento com raiva, porque ele me irrita e a todos nós pacientes, mas também com bom humor, porque rir dele e das nossas amolações com ele ajuda a desopilar. E faço com gratidão, porque ele existe para nos tratar melhor, para nos curar e para se livrar da gente o mais rápido que puder — como queremos fazer com ele.
"Suporte, baby, suporte", já recomendava o Cazuza, numa de suas grandes canções. "Suporte, baby, que a vida é bem mais perigosa que a morte". Ele falava do verbo, não do substantivo, e falava do amor, não da doença, mas vale para tudo, inclusive ela.
Digo eu a mim mesmo: suporte. Suportemos todos e todas nós o danado do suporte e todos os incômodos de todos os tratamentos. Porque hospital é para nos livrar de perigos, estamos a bordo de um dos melhores e aquela haste de metal é cheia de significado. É o símbolo da nossa coragem e determinação em enfrentar as provações e vencer o câncer.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Um Cancer Center não é um hospital, é uma plataforma completa de atendimento, incluindo prevenção, investigação, estadiamento, tratamento, cuidados paliativos e reabilitação. Tudo no mesmo local.