Tumor Board, o supremo do câncer
Tumor Board, o supremo do câncer
Você que está atravessando a jornada do paciente aqui no A.C.Camargo já terá ouvido a expressão gringa Tumor Board? "Conselho do Tumor", em português? Se não ouviu, bom para você, o seu caso não tem complexidade para ele. Mas se ouviu, vou lhe dizer que é melhor ainda. Especialmente para quem se assustou quando ouviu, porque o bicho lhe pareceu feio. Isso rola com uma boa parte de nós, oncológicos, e com a outra parte acontece o oposto. Soa como ótima notícia, a depender da forma como nos contam.
Eu soube dele pela adorável Dra. Estefani Albuja Rivadereira, a médica assistente que me acompanhou durante a internação, em 2019. Lá pelo final daquele período, aquela delícia de comer pelo nariz e de ir ao banheiro com um acesso espetado no braço, empurrando um gazebo de metal, entra esfuziante pela porta do quarto a doutora. "O seu caso vai para o Tumor Board", diz ela sorrindo de orelha a orelha. "E é bom isso?", pergunto. "É ótimo! Ele vai ser examinado por especialistas de várias áreas. Um monte de craques!".
Se eu precisava dessa análise colegiada, pensei, o caldo tinha engrossado. É o que pensa o primeiro grupo de pacientes que citei acima. Que é um alerta vermelho. Algo assim como "a coisa complicou, o meu médico não está dando conta de lidar com ela sozinho e foi pedir ajuda". Mas Estefani estava tão excitada e alegre que relaxei. Não faria sentido se fosse notícia ruim.
Entendi então que, mesmo que o meu malvado e extirpado carcinoma espinocelular nível 2 houvesse deixado alguma célula comparsa para me atazanar, o caso seria julgado em tribunal superior. Pelo melhor do saber médico disponível no hospital, que daria ao meu tratamento a melhor condução possível. Confiei que o processo tinha subido ao Supremo. Caso houvesse um novo tumor, atentando contra a minha institucionalidade orgânica, o bandido seria punido com rigor, como outros bandidos já foram ou vão ser. Ah, se vão…
Não aconteceu nada de ruim, ao contrário. Estou na fase final do seguimento, sem recidiva. Só agora, entretanto, depois de anos de curiosidade acumulada, fui conhecer melhor o que é e como funciona o mitológico Tumor Board. Que existe desde 2016 e cujo nome completo, aliás, é Desfechos Clínicos e Tumor Board — e não vá se assustar com esses "desfechos". Não são aqueles.
"Desfechos Clínicos são os resultados mensuráveis de uma intervenção, tratamento ou procedimento que afetam diretamente o estado de saúde, bem-estar ou a qualidade de vida de um paciente", informa a sorridente e precisa Deborah Sato, enfermeira que organiza as reuniões da área. "Eles são utilizados para avaliar a eficácia de determinadas intervenções e orientar as tomadas de decisões."
Deborah diz também qual é a definição oficial de Tumor Board no A.C.Camargo. "Trata-se de reuniões multidisciplinares, com objetivo de discutir o diagnóstico, aspectos do tratamento e o melhor gerenciamento do cuidado do paciente, com base na literatura médica e na experiência dos profissionais, seguindo as diretrizes técnicas em diferentes disciplinas".
Multidisciplinar e multifuncional — eu complemento. Médicos e enfermeiros. E põe multi nisso! Vai vendo aí. São 15 núcleos de TB (abreviemos o nosso chegado): Tumores do Aparelho Digestivo Alto, Neoplasias Hematológicas, Tumores Ósseos e Sarcomas, Tumores Colorretais, Tumores da Mama, Tumores da Cabeça e Pescoço, Tumores Cutâneos, Tumores Ginecológicos, Tumores do Pulmão e Tórax, Tumores Urológicos, Tumores Pediátricos, Tumores do Sistema Nervoso Central, Tumores Vasculares, Núcleo Molecular e Núcleo de Hipófise e Endócrino.
A maioria desses núcleos se reúne semanalmente, com médicos especialistas em Cirurgia Oncológica, Oncologia Clínica, Radioterapia, Radiologia (exames de imagem), Patologia, Oncogenética (a parte genômica do câncer, a herança familiar), Cuidados Paliativos (conforto do paciente, com foco na dor) e Anatomia Patológica (aquele povo que examina as peças de câncer, faz sashimi e carpaccio delas para estudar bem). Também está em todos os núcleos a Enfermagem, com o seu pessoal de Navegação, os enfermeiros que colam nos casos mais graves e acompanham toda a jornada. E ainda entram profissionais de outras especialidades médicas, quando necessário.
Quem leva o caso e exame no TB é o médico titular do paciente, aquele que o atendeu inicialmente no A.C.Camargo. Outros médicos também podem sugerir que um caso seja apreciado, se julgarem que o paciente apresenta alguma anomalia, quando passa pela sua especialidade. Os bambas discutem de 4 a 5 casos por sessão, que tem duração prevista de uma hora, mas não é incomum que se estenda. Em 2023, essa maratona de análise e orientação de tratamentos discutiu nada menos que 2.323 casos — quase 45 por semana, na média anual.
Nessa parte da minha conversa com Deborah Sato, entra nela a médica paliativista Milena dos Reis, que atua nos núcleos de TB de mama, urologia, e cabeça e pescoço. Ela e seus colegas de Cuidados Paliativos chegaram ao grupo de especialistas há pouco tempo, em outubro de 2022. E você vá se ligando nesse povo, porque eles são uns médicos diferenciados. Militantes.
Paliativistas não são apenas especialistas em lidar com as dores dos pacientes, todos os tipos delas — as físicas, as emocionais, as familiares, as sociais. Eles são cruzados da luta por desestigmatizar a sua área e ressignificá-la. Batalham por demonstrar que ela não é apenas a especialidade de acompanhar os doentes terminais, mas de dar conforto e qualidade de vida a todo oncológico, desde o início da jornada. Vou falar melhor disso outro dia, mas hoje fiquemos com que a Dra. Milena diz do Tumor Board.
"Quando a gente olha os cancer centers existentes", ela diz, "todos eles têm reuniões multidisciplinares e multifuncionais. Mas nem todos têm paliativistas participando. Um dos mais importantes do mundo, por exemplo, o MD Anderson dos Estados Unidos, não tem. Aqui no A.C.Camargo, nós temos esse avanço no Tumor Board. A contribuição de Cuidados Paliativos é a de olhar o tratamento sempre pelo ângulo do paciente e de sua família, do seu conforto e da sua conveniência. E contribuir com as análises técnicas das especialidades, para a tomada das melhores decisões em cada caso analisado".
De certa forma, então, os paliativistas são os nossos advogados no "tribunal". Os médicos que que vocalizam os problemas não-médicos decorrentes dos tratamentos que nós experimentamos e as queixas que nós queremos que todos no hospital escutem. Mas existe uma ordem de prioridade na abordagem das coisas no Tumor Board.
É assim que deve ser mesmo, certo? Primeiro, a ciência. Mas os nossos problemas estão lá e os médicos não são insensíveis a eles.
Um exemplo dessa atenção é o caso de uma paciente muito idosa, com demência, que tinha uma forma muito agressiva de câncer. A discussão no TB foi sobre iniciar ou não outra fase do tratamento dela. Cuidados Paliativos considerou que, pelo quadro geral, era melhor interromper. "Talvez ela nem tivesse tempo de vida ou cognição para aproveitar um bom resultado do tratamento, já improvável àquela altura", ela conta. "Conversamos com a família, ela topou e a pessoa interrompeu o tratamento. Foi para o atendimento conosco, já tem seis meses somente acompanhada e tem qualidade de vida".
Deborah complementa a doutora, observando que está em curso uma mudança importante no Tumor Board. Boa para todos os envolvidos, médicos e pacientes. "Aos poucos, a gente vai implantando uma cultura. Estamos evoluindo para que toda a nossa equipe possa trabalhar em conjunto, pelo benefício do paciente. Não só no tratamento, mas para a sequência de vida dele'. E eu acrescento que não é só por lá, não, mas em todo o A.C.Camargo que isso vem acontecendo. Testemunho isso, já disse e reitero.
Enfim, se você ainda pensa que os médicos levam os casos a debate no Tumor Board por insegurança ou desorientação, esqueça. Eles levam para enriquecê-los.
O Tumor Board é um ato de comprometimento e humildade. É quase uma forma de culto, um momento em que todos estão ensinando e aprendendo. É um espaço de capacitação diferenciado, onde a gente aprende, troca pontos de vista e toma decisões em benefício do paciente
Eu quero ser julgado num tribunal desses, você não? O processo é virtuoso, a sentença é promissora para mim e a jurisprudência é boa para todo mundo.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
Um Cancer Center não é um hospital, é uma plataforma completa de atendimento, incluindo prevenção, investigação, estadiamento, tratamento, cuidados paliativos e reabilitação. Tudo no mesmo local.