O câncer crônico
O câncer crônico
Antes mesmo de diagnosticar um tumor no meu rosto, eu já ouvia a frase tranquilizadora. "O câncer agora é uma doença crônica, não é mais um bicho de sete cabeças". Ela surgia sempre que a conversa envolvia um relato da doença, fosse acometendo um dos interlocutores, um parente dele ou alguém importante, famoso ou não, que se temia perder. Funcionava como uma senha de segurança, um toc-toc na madeira, para blindar a vítima de maus prognósticos, com uma couraça de solidariedade, otimismo e fé. Sobretudo a fé, que não era apenas na intervenção divina, mas no avanço da ciência médica. Câncer seria crônico por não ser mais mortal.
A vivência da doença, no tanto que li e ouvi sobre ela, me esclareceu que não é bem assim. Aquela letalidade inexorável, a "sentença de morte" que se vê num filme de época, certamente ficou lá no passado. A Sociedade Brasileira de Oncologia diz que, hoje, 60% dos tumores podem ser curados com os muitos tratamentos disponíveis. Se forem detectados no começo, as chances são ainda maiores. Mas, nos 40% que ainda não tem cura, porque o tumor é inacessível, porque não ainda há medicação que o elimine, ou por qualquer outra razão, ele pode ser "administrado" por longo tempo, coisa de muitos anos. É essa gestão do câncer que faz dele uma doença "crônica".
Faz oficialmente, aliás. O Ministério da Saúde a classifica assim. Uma portaria de dez anos atrás, a 483, define as doenças crônicas como "aquelas que apresentam início gradual, com duração longa ou incerta, que, em geral, apresentam múltiplas causas e cujo tratamento envolva mudanças de estilo de vida, em um processo de cuidado contínuo que, usualmente, não leva à cura". O câncer se enquadra todinho nessa descrição, salvo pelo "usualmente", que eu não usaria no texto. Mas sou colunista do hospital e não redator de ministério, sou paciente e não doutor, e é de outra forma que enxergo a nossa tão familiar "doença crônica".
Visto por quem tem ou teve, o câncer é crônico na preocupação que incute na freguesia. Ela se reproduz e alastra em nosso sistema nervoso de um jeito que nem a cura da moléstia elimina. Tenho refletido muito e escrito aqui sobre essa peculiar forma de angústia. Quem tem câncer, teme a metástase. Quem já teve, teme a recidiva. Esse é o meu caso. Completei em junho os cinco anos protocolares de seguimento, sem volta de nenhum tumor, e estarei eventualmente curado. Mas não me curo nem vou me curar do medo de que ele surja de novo, no sexto ano, no sétimo ou amanhã cedo. A qualquer instante. Esse temor é… crônico.
O câncer também é crônico nas sequelas que ele deixa, maiores ou menores, conforme o tipo de tumor e onde apareceu, conforme o caso de cada paciente. Antes do meu "espino" na maxila, eu penava com uma sinusite da vida toda, crônica de 50 anos. Agora eu peno com ela e mais o estrabismo, o estreitamento do canal auditivo, a mastigação difícil com a perda dos dentes, o paladar ruim, o olfato quase inexistente etc. etc. etc. Tudo que custou o meu tratamento. Ele salvou a minha vida, sou gratíssimo por ele, mas deixou essas "lembrancinhas" eternas, que enfrento reconhecido e resignado. Sequelas crônicas.
O câncer é crônico, ainda, na humildade que impõe à gente e não nos deixa escapar. Humildade de aceitar a fragilidade do corpo, a imponderabilidade da doença, os limites da resistência, a condição mortal do humano. Humildade em reconhecer a incapacidade de se curar sozinho, valorizar a ciência médica e entregar-se aos cuidados de pessoas que não conhecemos, mas sabemos que podem fazer por nós o que não podemos. Humildade, sobretudo, em compreender que, por ruim que seja o nosso caso, haverá outros piores, e que solidarizar-se com os colegas de jornada, com toda força da nossa mente e coração, é um dever de humanidade e um bem que fazemos a nós mesmos.
O câncer é crônico quando se pensa nele assim. Olhando amplamente, enxergando dimensões que vão além da saúde, da técnica, dos remédios, dos tratamentos, da maratona em que mergulhados. O câncer é crônico porque, como qualquer coisa da vida, ele pode ser vertido em ideias, imagens, palavras. É crônico porque também é crônica.
Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.
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