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Meu olhar para a criança que sofre

 
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Meu olhar para a criança que sofre

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Foto do Gabriel Priolli, colunista da Voz do Paciente

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Foto do Gabriel Priolli, colunista da Voz do Paciente

Naqueles dias de feriado, há dois anos, a Bebel foi o centro das atenções. Não apenas por ser a única criança no grupo de adultos, metade deles velhos, mas por ela mesma, seu jeito, sua personalidade. Aos 9 anos, a moreninha "sapeca", como diria minha mãe, esbanjava vitalidade. Inquieta, inteligente, incansável, ela falava pelos cotovelos, contava piadas, cantava, enfim, estrelava o espetáculo. Só dava Bebel na cena, que dividimos fechados dentro da casa de praia, sob uma chuva incessante. Ela ocupou totalmente o palco e a plateia não tinha por onde escapar, com o tempo ruim. Nem queria, porque era uma delícia assisti-la.

No último fim de semana, eu estive com a Bebel novamente. Ela é neta de amigos queridos, com quem convivo há meio século, e um deles aniversariava. Deu um almoço delicioso para a família e uns poucos convidados. A prole toda estava lá. A meninada do casal, que eu vi nascer e agora é casada, foi com os cônjuges e filhos. Estava uma zoeira maravilhosa de crianças por todo lado, em meio aos velhos babões que curtiam aquilo deliciados. Mas a alegria da festa, infelizmente, não era total. E o motivo, por ironia da vida, era a Bebel.

Nos dois anos que se passaram, ela conheceu o câncer infantil. Entrou naquele grupo dos 2% a 3% da população que têm a doença, como detalhou há algum tempo para esta coluna a Dra. Viviane Sonaglio, chefe da Pediatria no A.C.Camargo. Diagnosticaram na Bebel um glioma, um tipo de tumor que responde por 33% dos casos de câncer cerebral. Dependendo da região onde aparece, ele pode ser operado e tem boas perspectivas. Mas o dela é um glioma lateral enraizado, que está em local inacessível. Bebel fez quimioterapia, o tumor diminuiu, depois voltou a crescer. Tentou um remédio experimental que a família foi buscar na Suíça, melhorou por um tempo, mas o tumor cresceu de novo. Agora ela está fazendo radioterapia, na tentativa de mantê-lo estável, até que algum caminho novo se abra.

A nota triste da festa foi ver a tristeza da Bebel. Aquela criança esfuziante, elétrica, agora está deprimida. Tristinha, não quis sair do quarto onde se enfurnou a maior parte do tempo. Foi um custo trazê-la para cantar parabéns ao vovô e comer o bolo de chocolate. Aos 11 anos, ela está com o lado esquerdo do corpo semiparalisado. O braço, totalmente. O nervo ótico foi afetado e ela tem de usar uns óculos bem grossos, com lentes de alto grau. Como qualquer criança na pré-adolescência, Bebel se importa com a aparência e se agonia em ver como está. Ela adorava ir à escola, mas agora não quer mais, diz que não se sente bem. Os colegas a amam, acolhem, incentivam, mas não é suficiente. Ela não se sente mais à vontade.

Saí desse encontro pensando em como o câncer é uma doença social. A expressão é muito usada em sentido figurado, para se referir a problemas sérios que afetam a sociedade como um todo. Também tem um sentido literal, para explicar moléstias que são causadas por condições sociais, de moradia ou trabalho, por exemplo. Mas aqui eu uso no sentido da sociabilidade, do tanto que o câncer afeta as pessoas que convivem com o doente. A família em primeiro lugar, depois os amigos, os colegas de trabalho, o mundo em geral. Todas as relações sociais são afetadas, de algum modo. Todos os envolvidos nessas relações são tocados, em maior ou menor grau. Quando o paciente é criança, então… É uma prensa na alma da gente. Adoecemos de dor.

Bom, mas se o câncer é uma doença social, se enferma a sociabilidade, o tratamento também deve ser. Deve envolver um esforço conjunto dos envolvidos. Tanto o paciente quanto os acompanhantes da sua jornada. Quem tem a doença e não é mais criança, já pode compreender como a sua situação sensibiliza as pessoas e como pode machucá-las, simplesmente por verem alguém querido sofrer. E quem está em torno do paciente, quem testemunha a sua luta, pode entender que a força dele depende da sua. Da energia da sua positividade, confiança, paz, solidariedade, alegria, amor, muito amor, tudo que possa transmitir a ele. Sem economizar. Para o que der e vier. Pelo tempo que for e enquanto durar.

Não sabemos quanto tempo a Bebel ainda estará conosco. Todos estamos conscientes da gravidade do caso e das poucas chances de recuperação. Os avós meus amigos estão calmos e resignando-se. São religiosos e têm o conforto de Deus nessa hora, o que é um baita lenitivo. Eu sou materialista, mas faço como Elis Regina canta na maravilhosa Romaria, de Renato Teixeira, talvez a mais bela canção sertaneja que alguém já escreveu. Para iluminar essa mina escura e funda, o trem da minha vida com o coração entristecido, eu penso na Bibi com toda a força do espírito, para que a sorte traga luz e saúde a ela. E como eu não sei rezar, só posso fazer o que faço: mostro ao céu o meu olhar, meu olhar, meu olhar, cheio de amor a ela e à vida.

Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

Por que o A.C.Camargo Cancer Center?

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